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Publicado em 18 de janeiro de 2023 Atualizado em 18 de janeiro de 2023

O homem que não faz nada

A utilidade de alguém que não faz nada profissionalmente

Uma foto de uma plataforma de trem no Japão. Ao meio, uma ilustração de um homem em pé com um boné azul. Montagem: Benoît Pignard. Ilustraçao: irasutoya.com

Para que serve uma pessoa? Enquanto perguntas como "para que serve um dentista" ou "para que serve um corretor de seguros" são simples de  responder, podemos nos ver desconcertados quando a pergunta se refere a um humano sem outra designação. O trabalho é um dos pontos focais da vida adulta, porém nem todo trabalho é útil ou proporciona bem estar. Para que serve uma pessoa? Frente à esta pergunta Shoji Morimoto, um japonês de 39 anos, decidiu não fazer nada.

Morimoto apareceu em diversas mídias em 2022 como a "pessoa de aluguel que não faz nada". À primeira vista, ele pode ser considerado uma curiosidade da sociedade japonesa, onde se pode alugar de falsos parentes a falsos parceiros para encontros românticos. Porém sua oferta se distingue de outras pois Rental-san, como é conhecido, propõe não fazer nada. Assim ele apresenta seu serviço em sua conta do Twitter:

Alugo alguém que não faz nada (eu). Aceito aplicações continuamente. A tarifa de pedido é 10.000 ienes, mais gastos de transporte da estação Kokubunji e despesas com comida e bebida (se houver). Para pedidos e perguntas, por favor DM. Não posso fazer nada além de comer, beber, e responder a perguntas de forma simples. 

Qual é a utilidade de alguém que não faz nada? 

A proposta de "não fazer nada" se revela como um exagero intencional. Rental-san decide se a proposta do cliente consiste em fazer ou alguma coisa ou não, recusando aquelas que considera improprias. Alguns pedidos podem ser curiosos ou engraçados: ver um adulto se balançar em um playground, acompanhar uma senhora a um restaurante chique para comer um menu infantil ou cheirar uma pessoa que suspeita exalar um odor particular.

Outros pedidos podem ir do impessoal ao comovente: 

  1. Acompanhar um executivo que passou a se sentir ansioso a caminho do escritório após ter cometido um erro no trabalho;

  2. Apreciar o jantar de uma jovem que gosta de cozinhar. Sua família havia deixado de notar seus pratos, e ela gostaria que alguém os elogiasse;

  3. Passear ao lado de uma mulher e seu cachorro recém operado. O cachorro se recusava a andar apenas com a dama e seu marido;

  4. Ouvir uma mulher honrar as lembranças de um namorado que se suicidou;

  5. Ver uma jovem fazer as malas antes de viajar para a Coréia sozinha para passar por uma cirurgia estética.

A abertura da serie inspirada em Rental-san (três livros foram publicados sobre ele, assim como um manga) resume a utilidade de seu serviço: "para qualquer situação que necessite uma pessoa."

Almas solitárias, relacionamentos transacionais

Ha quem possa imaginar que apenas pessoas solitárias procurem tal serviço. De fato, na megalópole de Tóquio, abundam pessoas que vieram de outras cidades, que trabalham intensamente e não tem tempo para relacionamentos ou ocasião para fazer novos amigos. Alugando um estranho, elas podem contar com uma companhia para reduzir o desconforto de fazerem algo sozinhas, e evitar pensamentos intrusivos caso estivessem sos. Além disso, mesmo quem tenha amigos ou parentes para contar pode precisar de companhia - nem sempre os horários coincidem, ou talvez impor uma tarefa a amigos ou parentes não convenha.

Pode-se imaginar que a diferença cultural explique este fenômeno. No Japão existem agências de atores que personificar amigos, parentes ou colegas de trabalho em situações sociais diversas, indo de casamentos a reuniões de trabalho. Conceitos como 'honne' (agir naturalmente, reservado à esfera intima) e 'tatemae' (a face social, agir conforme o esperado pelos outros) caracterizam a sociedade; existe muito respeito pelo espaço privado e uma aversão a incomodar os outros. No entanto, em qualquer pais do mundo, pessoas passam por momentos difíceis: se gostaria de alguém que escutasse sem julgar para ajudar a organizar os pensamentos, que não fizesse perguntas, que não tivesse expectativas e necessidades a serem consideradas, alguém a quem não seja necessário explicar tudo.

O escritório de Rental-san é o Twitter. Nele ele recebe propostas e pedidos de mensagens de encorajamento, assim como relata suas aventuras (preservando o anonimato dos clientes). Um paradoxo curioso: numa mídia voltada para a autoexposição, um auto-declarado fazedor de nada publica experiências da vida 'real' com estranhos anônimos.

A vida é séria demais

Antes de se tornar Rental-san, Morimoto foi redator de materiais didáticos e tutor de escola primaria (onde ensinou fazendo o menos possível). Formado em Física pela Universidade de Osaka, Morimoto teve dificuldades em adaptar-se a um emprego tradicional - seu chefe comentava o quanto ele mal fazia diferença no trabalho. A ideia de alugar-se foi inspirada em um outro homem que oferece ser cuidado, recebendo refeições e presentes. Morimoto achou que seria divertido oferecer-se para outros sem fazer nada especifico. Sem cobrar nada no início e durante um período em 2020, ele complementa a renda de sua esposa com quem tem um filho.

Uma de suas missões foi despedir-se de alguém em uma plataforma de trem, como nos filmes. O cliente se sentiria triste se um amigo estivesse la, mas um completo desconhecido tornou a situação leve e engraçada. Pela variedade de casos relatados, podemos imaginar o quão variada é a rotina de um fazedor de nada profissional.

No livro 'The War on Normal People', Andrew Yang defende a renda básica universal como alivio para milhões de trabalhadores que poderão ser substituídos pela inteligência artificial. Como solução à inatividade forçada pelo desemprego, ele propõe um sistema não muito diferente ao que vimos aqui: prestar favores a estranhos. Em uma entrevista à BBC, Morimoto termina dizendo:

"Ao ver muitas pessoas e casos, descobri que nem todos necessariamente fazem algo útil para a sociedade. Se nossa sociedade requer que façamos algo útil para viver, esta ainda é a lei da selva. Acho que a civilização apenas existe quando mesmo pessoas inúteis podem viver."

Para saber mais:

Entrevista: The Japanese man who gets paid to 'do nothing'
https://www.bbc.com/reel/video/p0cqnfbv/the-japanese-man-who-gets-paid-to-do-nothing-

Artigo: Rent-a-stranger: This Japanese man makes a living showing up and doing nothing - Michelle Ye Hee Lee e Julia Mio Inuma
https://www.washingtonpost.com/world/2022/03/19/japan-loneliness-rent/

Entrevista (em japonês) - https://book.asahi.com/article/12371233

Wikipedia Rental-san (em japonês) - https://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%AC%E3%83%B3%E3%82%BF%E3%83%AB%E3%81%AA%E3%82%93%E3%82%82%E3%81%97%E3%81%AA%E3%81%84%E4%BA%BA

Twitter - Shoji Morimoto (em japonês) - https://twitter.com/morimotoshoji

Livro: 'The War on Normal People: The Truth About America's Disappearing Jobs and Why Universal Basic Income Is Our Future' - Andrew Yang
https://www.decitre.fr/ebooks/the-war-on-normal-people-the-truth-about-america-s-disappearing-jobs-and-why-universal-basic-income-is-our-future-9780316414258_9780316414258_522.html


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