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Publicado em 14 de setembro de 2022 Atualizado em 16 de dezembro de 2022

Meninas ágeis e meninos frágeis

De que forma as relações de gênero afetam as aulas de educação física e como professores/as encorajam a prática esportiva de meninas

Crianças jogando futebol. Três meninos de um time contra duas meninas e um menino de outro time. À frente, um menino e uma menina do time oposto correm atrás da bola. Imagem: Lars Bo Nielsen

Como eram as suas aulas de educação física na escola? Os meninos jogando futebol e as meninas vôlei? Ou os meninos na quadra e as meninas nas beiradas, conversando (no meu caso foi assim durante o ensino médio)? E foi só após ter lido a tese de doutorado em educação física de Simone Cecilia Fernandes, intitulada “A educação esportiva de meninas na escola pública: experiências positivas de gênero na Educação física”, nunca tinha pensado de que maneira as relações de gênero definem o jogo na quadra da escola.

Afim de responder à pergunta: como ocorre a educação esportiva de meninas na escola pública, doutora Fernandes estudou as práticas de oito professores/as da rede pública de Campinas, interior de São Paulo. Eles/as participam frequentemente dos jogos escolares do município, e seus times com meninas apresentam boas colocações. Doutora Fernandes conduziu entrevistas e teceu uma rede de significados entre técnicas de ensino e noções de gênero que colorem as relações entre docentes e discentes.

Nos capítulos, a autora explora, entre outros temas, o papel da estética, das competições entre escolares, as inseguranças e a falta de estímulo para a prática esportiva de meninas, a persistente inferiorização das meninas e a estigmatização dos meninos, as relações performáticas de gênero, assim como a prática e posicionamentos dos professores/as.

A autora começa sua introdução com uma deliciosa anedota:

“Era um campeonato em minha escola, ano de 2012. Não era qualquer esporte, era futsal. E com ele impregnada a paixão pelo futebol e a expectativa de num instante transitar entre dores e alegrias possíveis. (...)  As equipes eram mistas, mas não obrigatoriamente mistas. Três meninas se juntaram e convidaram dois meninos para compor um time, ficando um deles no gol.

Era o jogo delas e estavam jogando contra uma equipe composta somente por meninos. As meninas eram boas, muito boas. Foi então que percebi a atitude temerosa do juiz, que era o professor de matemática, inquieto com a possibilidade de os meninos “tomarem” um gol delas. Lá pelas tantas do jogo ele não se conteve e começou a verbalizar, baixinho, para si, “meus deus, eles vão tomar gol” e depois, em tom audível, gritava para eles “fecharem o chute” e antecipava o que estava por vir: “vocês vão tomar gol das meninas!” gritava e gesticulava um tanto preocupado. Eu, ali, próxima dele, me deliciava com essa possibilidade, sem compreender os seus receios e os meus sentimentos.

Tudo soava de “pernas para o ar”, quando elas marcaram aquele golaço com um chute bem de fora da área. Foi uma vibração só, e um misto de alegria e vergonha por toda a escola. Alegria, algo normal nestes momentos. Mas vergonha?! Ainda não entendia porque muitos torcedores/as que ali estavam “zoavam” com tanta ingratidão os jogadores. Algo um tanto incontido, em descontrole, se passou por alguns segundos antes de tudo recomeçar novamente. O juiz, no instante do gol, talvez para não ver e assim não sofrer tanto, virou de costas, gesticulando com todo o seu corpo, não acreditando no que estava acontecendo.” 

Esta história ilustra questões-chave da tese (hierarquia de gêneros e subversão de práticas culturais de dominação, interpretações sobre corpo, sexo e gênero) pelos quais a autora transita com habilidade na introdução, fazendo um “diálogo” com autores/as das ciências humanas, das áreas de educação física, dos estudos de gênero e queer.

Meninas-vitrine e meninos atletas?

O estudo aponta diferenças entre meninos e meninas em relação ao esporte que podem parecer evidentes à primeira vista, mas que apontam causas e consequências estreitamente ligadas às relações de gênero (e poder).

Com que frequência vemos meninas praticando esportes nas ruas, enquanto é natural vermos meninos fazendo isso? A tese aponta que meninos recebem mais apoio fora da escola (de amigos e parentes) para praticarem atividades físicas do que meninas (cujos apoiadores são os/as professores/as de educação física). Desde cedo meninos são mais encorajados a praticarem jogos físicos, o que lhes confere uma maior aproximação com o esporte. Isto se reflete nas aulas; meninas tendem a participar menos, sentirem-se mais inseguras e serem deixadas de lado, e meninos são mais desenvoltos e tendem a se apropriar (se permitidos) do tempo e espaço da aula.

Outra questão é o papel da estética, especialmente feminina. Os/as professores/as exigem uma vestimenta que propicie boa disponibilidade corporal para se movimentar (tênis e roupas adequadas), além de pedidos especiais para meninas: cabelo preso, rosto sem maquiagem para não borrar, unhas mais curtas para que não quebrem, ausência de acessórios que possam machucar, como brincos grandes. Assim, certas meninas se liberam de seus adornos para descobrir novas experiências corporais. Elas podem ver-se potentes, fortes e ágeis, o que lhes confere uma outra vivência de gênero que sua imagem fora das aulas permite – um corpo contido, delicado, nos padrões da beleza hegemônica. 

Meninos de um lado e meninas do outro? 

Alguns professores decidem separar meninos e meninas em times, sob o argumento de que  meninos são fortes e meninas são frágeis. Entretanto, esta divisão não considera diferenças físicas dentro de cada gênero: alguns meninos são menores e menos hábeis, e algumas meninas são ágeis e fortes. 

Transitar entre estas diferenças pode ser complicado. Um professor abre exceções apenas para meninas, que podem jogar em times de meninos, por medo que o inverso acarrete em estigmatização do menino que jogue com meninas, fazendo-o parecer “menos menino”.  Esta noção inferioriza os fazeres esportivos das meninas, na qual estas podem acessar um nível “superior” por conta de suas habilidades, enquanto é “humilhante” para um menino jogar com meninas. 

Uma professora se baseia em outros critérios para separar grupos: as experiências de movimentos comuns dos alunos/as e a vontade de realizar a aula conjuntamente. Assim, todos/as têm oportunidade de participar, não acarretando em privilégios (a noção de que “os mais fortes jogam primeiro”) ou antagonismos entre meninos e meninas (meninos que não passam a bola para meninas). 

Por que ler esta tese? 

 As questões de gênero no esporte têm ocorrido com maior frequência nos últimos tempos. Joanna Harper, uma corredora canadense de longa distância, transgênero e cientista do esporte, aconselhou o Comitê Olímpico Internacional sobre esportistas trans e propõe que biomarcadores como testosterona sejam usados para diferenciar categorias. 2022 marcou o retorno do Tour de France feminino, porém as ciclistas buscam mais: uma prova tão longa quanto à dos homens (21 dias no lugar de 8), além de segurança financeira.

A antiga classificação de dois sexos e dois gêneros não abarca a diversidade que é expressada na atualidade. O que era antes visto como óbvio passa e ser escrutinado, mostrando uma manutenção de uma ordem desigual. O estudo de doutora Fernandes mostra de que forma as relações de gênero da sociedade marcam as aulas de educação física. Ela relata como professores/as percebem as desigualdades entre os gêneros e buscam dar oportunidades para que todos/as sejam sujeitos agentes, e experimentem novas relações e emoções a partir do corpo. 

Curioso/a para descobrir as práticas de sucesso dos/as  professores/as? Descubra lendo a tese de de Simone Cecilia Fernandes, “A educação esportiva de meninas na escola pública: experiências positivas de gênero na Educação física”. Talvez você não veja mais crianças brincando numa quadra da mesma forma. 


Referências

A educação esportiva de meninas na escola pública: experiências positivas de gênero na Educação física - Simone Cecilia Fernandes
https://repositorio.unicamp.br/Acervo/Detalhe/967249

A atleta e cientista transgênero que propõe solução para dilema da troca de gênero no esporte
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61914179

Como a volta das mulheres ao Tour de France pode mudar o ciclismo feminino
https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/como-a-volta-das-mulheres-ao-tour-de-france-pode-mudar-o-ciclismo-feminino/


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